sábado, 31 de maio de 2014

Bakunin 200 anos - O Socialismo Humanista, Mikhail Bakunin


Findando a divulgação dos textos em relação ao bicentenário de Bakunin traduzidos pelo GEAPI, disponibilizamos um feito pelo próprio punho do anarquista russo.

Este texto perfaz o III capítulo do livro "Incitar la acción", de Mikhail Bakunin, editado pela Terramar Ediciones, Buenos Aires: 2013.

Tenham uma boa leitura!

O Socialismo Humanista

O homem frente ao Estado.
Mas o que é permitido ao Estado, é proibido ao individuo. 
Tal é a máxima do governo. Maquiavel e a história disseram, o mesmo que a prática de todos os governos atuais, lhe dão razão. O crime é uma condição necessária para a existência do Estado, que se apropria de seu monopólio exclusivo, donde resulta que o indivíduo que se atreve a cometer um crime é culpado duas vezes: primeiro, contra a consciência humana, e logo, então, contra o Estado, que usurpa um dos seus mais preciosos privilégios.

Individualismo e anti-humanismo
Eu entendo por individualismo essa tendência que - considerando toda a sociedade, a massa de indivíduos, a dos indiferentes, a dos rivais, a dos concorrentes, bem como os inimigos naturais, em uma palavra, com os quais cada um está obrigado a viver, mas que obstruem o caminho para cada um - impulsiona o indivíduo a conquistar e estabelecer o seu próprio bem-estar, a prosperidade, a felicidade, contra todo o mundo, em detrimento de todos os outros. É uma perseguição furiosa, em geral, que "Salve-se quem puder!", em que cada um tenta chegar primeiro. "Ai daqueles que param, se estão adiantados!" "Ai daqueles que, esgotado pelo cansaço, caem no caminho!, são imediatamente esmagados.
A concorrência não tem coração, não tem piedade.
Ai dos vencidos! Nesta luta necessariamente devem cometer-se muitos crimes; toda essa luta fratricida não é senão um crime permanente contra a solidariedade humana, que é a única base de toda a moralidade. O Estado que -se diz- o representante e o defensor da justiça, não impede a prática de tais crimes; pelo contrário, os perpetra e os legaliza. O que ele representa, o que ele defende, não é a justiça humana, é a justiça jurídica, que nada mais é que a consagração do triunfo dos fortes sobre os fracos, dos ricos sobre os pobres. O Estado não exige mais do que uma coisa: que todos esses crimes sejam realizados legalmente. Eu posso arruiná-los, matá-los, mas devo fazer observando as leis. Caso contrário, eu sou declarado criminoso e tratado como tal. Este é o significado deste princípio, desta palavra: Individualismo.

O homem moderno, degradado
Considerado do ponto de vista da sua existência terrena, ou seja, não fictícia, mas real, a massa dos homens apresenta um espetáculo de tal forma degradante, tão melancolicamente pobre de iniciativa, vontade e espírito, que é preciso estar dotado verdadeiramente de uma grande capacidade de iludir-se para encontrar neles uma alma imortal e a sombra de um livre-arbítrio qualquer. Se representam para nós como seres absolutos e fatalmente determinados: determinados principalmente pela natureza externa, pela configuração do solo e por todas as condições materiais de sua existência; determinados pelas muitas relações políticas e sociais, religiosas, pelos hábitos, costumes, leis, para um mundo de preconceitos ou de pensamentos  elaborados lentamente pelos séculos passados, e que se encontram no nascer da vida em sociedade, da qual eles nunca foram os criadores, senão primeiramente os produtos, e depois os instrumentos. Sobre mil homens apenas se encontrará um do que se possa dizer, do ponto de vista não absoluto, mas apenas o relativo, que quer e que pensa por si mesmo. A grande maioria dos indivíduos humanos, não só nas massas ignorantes, mas também nas classes privilegiadas, não querem e não pensam mais que o que todo mundo quer e pensa ao seu redor; creem sem dúvida querer e pensar por si mesmos, mas só servem para fazer reaparecer servilmente, rotineiramente, com modificações completamente imperceptíveis e nulas, os pensamentos e as vontades dos outros. Este servilismo, essa rotina, fontes inesgotáveis de trivialidade, essa ausência de rebelião na vontade de iniciativa, no pensamento dos indivíduos, são as principais causas da lentidão desoladora do desenvolvimento histórico da humanidade.

Humanismo e cientificismo
A ciência é tão pouco capaz de aprender a individualidade de um homem como a de um coelho. Isto é, é tão indiferente para uma quanto para outra. Não é que ignore o princípio da individualidade. O concebe perfeitamente como princípio, mas não como um fato. Sabe-se muito bem que todos os animais, incluindo a espécie humana, não tem existência real mais que em um número indefinido de indivíduos que nascem e morrem, abrindo espaço para novos indivíduos igualmente passageiros. Sabe que a medida que se eleva das espécies animais às espécies superiores, o princípio da individualidade é determinada mais, os indivíduos parecem mais completos e mais livres. Sabe, enfim, que o homem, o último e mais perfeito animal da terra, apresenta a individualidade mais completa e mais digna de consideração, por causa de sua capacidade de conceber e realizar, de personificar, de certo modo em si mesmo, e em sua existência tanto social como privada, a lei universal. Sabe, quando não está viciada pelo doutrinalismo teológico, metafísico, político ou jurídico, ou mesmo por orgulho estritamente científico, e quando não é surda aos instintos e às aspirações espontâneas da vida, sabe, e essa é a última palavra, que o respeito pelo homem é a lei suprema da humanidade, e que o grande, o verdadeiro fim da história, o único legítimo, é a humanização e a emancipação, é a verdadeira liberdade real, a prosperidade real, a felicidade de cada indivíduo que vive em sociedade. Porque, afinal de contas, a menos de voltar a cair na ficção sempre fundada no sacrifício sistemático das massas populares, é preciso reconhecer que a liberdade e a prosperidade coletivas não são reais, mas que quando elas representam a soma de liberdade e prosperidade individual.
A ciência sabe tudo isso, mas não vai, não pode ir mais longe. Ao constituir a abstração sua própria natureza, pode muito bem conceber o princípio da individualidade real e viva, mas não poder ter nada a ver com indivíduos reais e viventes. Se ocupa dos indivíduos em geral, mas não de Pedro ou de Santiago, não, deste ou daquele indivíduo, que não podem existir para ela. Seus indivíduos não são, digamos até mais do que abstrações.
Portanto, não são essas individualidades abstratas, senão os indivíduos reais, viventes, passageiros, os que fazem a história. As abstrações não tem pernas para marchar, não marcham mais que quando são levadas por homens reais. Para esses seres reais, compostos, não somente de ideias, mas realmente de carne e sangue, a ciência não tem coração. Os considera no máximo como carne de desenvolvimento intelectual e social. O que importa as condições particulares e a sorte fortuita de Pedro e Santiago? Seria ridículo, abdicaria, se aniquilaria se quisesse ocupar-se delas de outro modo que como de um exemplo em apoio de suas teorias eternas. Seria ridículo querer fazê-lo, porque não é a sua missão. Não pode perceber o concreto; Não pode se mover mais do que em abstrações. Sua missão é resolver a situação das condições gerais para a existência e do desenvolvimento seja da espécie humana em geral, seja de tal raça, se tal povo, de tal classe ou categoria de indivíduos, das causas gerasis, de sua prosperidade ou de sua decadência, e dos meio gerais para fazê-los avançar em toda sorte de progressos. Sempre que realize ampla e racionalmente este trabalho, terá cumprido todo o seu dever, e seria verdadeiramente ridículo e injusto exigir-lhe mais.
Mas seria igualmente ridículo, seria desastroso confiar-lhe uma missão que não é capaz de executar. Posto que sua própria natureza a força a ignorar a existência e a sorte de Pedro e Santiago, não há que permitir, nem a ela nem a nada em seu nome, governar Pedro e Santiago. Porque seria muito capaz de tratar-los pouco mais ou menos que como trata os coelhos. Ou muito bem continuaria ignorando-os; mas seus representantes patenteados, homens, de nenhum modo abstratos, se não ao contrário, muito vivos, que tem interesses muito reais, cedendo à influência perniciosa que exerce fatalmente o privilégio sobre os homens, acabaria por  esgotá-los em nome da ciência, como têm-se esgotado até aqui os sacerdotes, os políticos de todas as cores e os advogados, em nome de Deus, do Estado e do direito jurídico.
O que eu prego é, pois, a´te certo ponto, a rebelião da vida contra a ciência, ou melhor, contra o governo da ciência. Não para destruir a ciência - isto seria um crime que lesa a humanidade-, mas para pô-la em seu posto, de maneira que não possa voltar a sair dele. Até o presente toda a história humana não foi mais que uma imolação perpétua e sangrenta de milhões de pobres seres humanos a uma abstração impiedosa: Deus, Pátria, o poder do Estado, honra nacional, direitos históricos, direitos jurídicos, liberdade política, bem público. Tal tem sido até agora o movimento natural, espontâneo e fatal das sociedades humanas. Nós podemos fazer qualquer coisa, temos de aceitá-la como no passado, quando aceitamos todas as fatalidades naturais. É necessário acreditar que este era o único caminho possível para a educação da espécie humana. Porque não há que se enganar: ainda cedendo a parte maior aos artifícios maquiavélicos das classes governantes, devemos reconhecer que nenhuma minoria teria sido bastante poderosa para impor todos esses terríveis sacrifícios às massas, se não tivesse havido nessas próprias massas um movimento vertiginoso, espontâneo, que as levassem sempre a sacrificarem-se sempre de novo a uma dessas abstrações, como vampiros da história, sempre se alimentado com sangue humano.
Que os teólogos, políticos e juristas fazem isso muito bem, se concebe. Sacerdotes destas abstrações, eles vivem mais que esse contínuo sacrifício das massas.
Que a metafísica dê também seu consentimento à isso, não deve surpreender ninguém. Não tem outra missão senão a de legitimar e racionalizar tudo o que é iníquo e absurdo. Mas que a própria ciência positiva mostrou até aqui as mesmas tendências, eis o que podemos constatar e deplorar. Não foi capaz de fazê-lo por duas razões: primeiro, porque, constituída na margem da vida popular, está representada por um corpo privilegiado; e porque ela colocou a si mesma, até aqui, como o fim absoluto e último de todo o desenvolvimento humano; enquanto que, por uma critica criteriosa, de que é capaz e que em última instância se verá forçada a executar contra si mesma, ela deveria ter entendido que é realmente  um meio necessário para a realização de um fim muito mais elevado: o da completa humanização da situação real de todos os indivíduos reais que nascem, vivem e morrem na terra.
A grande vantagem da ciência positiva sobre a teologia, a metafísica, a política e o direito jurídica consiste nisto: Que em vez das abstrações mentirosas e funestas pregadas por estas doutrinas, representa abstrações verdadeiras que experimentam a mesma natureza geral ou a lógica das coisas, suas relações gerais e as leis gerais do seu desenvolvimento. Eis o que a separa profundamente de todas as doutrinas e precedentes, que irá sempre garantir uma grande posição na sociedade humana. Constituirá de certo modo sua consciência coletiva. Mas há um aspecto nesta que a associa absolutamente a todas essas doutrinas: Que não tem e não pode ter por objeto mais que as abstrações, e esforçada, por sua própria natureza, a ignorar os indivíduos reais, fora dos quais ainda as abstrações mais verdadeiras não tem existência real. Para remediar este defeito radical, aqui está a diferença que deverá estabelecer-se entre a ação prática das doutrinas precedentes e a ciência positiva. As primeiras prevaleceram da ignorância das massas para sacrificá-las com voluptuosidade a suas abstrações, por outra forma sempre muito lucrativas para os seus representantes corporais. Em segundo lugar, reconhecendo sua incapacidade absoluta de conceber os indivíduos reais e interesse em seu destino, deve definitiva e absolutamente renunciar ao governo da sociedade, pois se se misturasse nele, não poderia fazer de outro modo que sacrificando sempre os homens viventes, que ignore a suas abstrações, que formam o único objeto de suas preocupações legítimas.
A verdadeira ciência da História, por exemplo, ainda não existe, e apenas se começa hoje a entrever as condições imensamente complicadas dessa ciência. Mas suponhamo-la emfim realizada: O que pode nos dar? Reproduzirá o quadro fundamentado e fiel do desenvolvimento natural das condições gerais, tanto materiais como ideais, tanto econômicas como políticas, das sociedades que tenham tido uma história. Mas esse quadro universal da civilização humana, por mais detalhado que seja, não poderá nunca conter mais que apreciações gerais e por conseguinte, abstratas, neste sentido, que os milhares e milhões de indivíduos que formaram a matéria viva e suficiente dessa história, triunfante e fúnebre do ponto de vista da imensa hecatombe de vítimas humanas "esmagadas sob seu carro", que esses milhares de milhões de indivíduos obscuros, mas que sem os quais não teria se obtido nenhum desses resultados abstratos da história, e que, note-se bem, não aproveitaram jamais nenhum desses resultados, que estes indivíduos não encontraram o menor quadrado na História. Eles viveram, foram sacrificados para o bem da humanidade abstrata, eis tudo...
Por um lado, a ciência é essencial para a organização racional da sociedade; por outro, incapaz de interessar o que é real e vivo, não ser misturada na prática da organização ou sociedade.
Essa contradição não pode ser resolvida mais que de um só modo: a liquidação da ciência como ser moral existente na margem da vida social de todo o mundo, e representada como por um corpo de sábios patenteados, e sua difusão nas massas populares. Sendo chamada a ciência daqui em diante a representar a ciência coletiva da sociedade, deve realmente converter-se em propriedade de todo o mundo. Por isso sem perder nada de seu caráter universal, de que não poderá jamais separar-se, sob a pena de parar de ser uma ciência, e enquanto continua lidando exclusivamente com as causas gerais, as condições gerais e as relações gerais de indivíduos e coisas, se fundirá na realidade com a vida imediata e real de todos os indivíduos humanos.

Homem, Liberdade e Trabalho 
É unicamente pelo pensamento de que o homem se torna consciente de sua liberdade no meio natural de que é o produto; mas é só pelo trabalho que a realiza. Observamos que a atividade que constitui o trabalho, ou seja, o trabalho tão lento da transformação da superfície de nosso globo pela força física de cada ser vivo, conforme as necessidades de cada um, se encontra mais ou menos desenvolvida em todos os graus da vida orgânica.
Mas não começa a constituir o trabalho propriamente humano mais que quando, dirigido pela inteligência do homem e da sua vontade reflexiva, serve a satisfação, não somente das necessidades fixas e fatalmente circunscritas da vida exclusivamente animal, mas mesmo das do ser pensante, que conquista a sua humanidade afirmando e realizando sua liberdade no mundo.

Homem político, homem moral
Compreendo e encontro perfeitamente legítimo, útil, necessário, que se ataque com muita energia e paixão, e não só com teorias contrárias, mas também as pessoas que os representam, em todos seus atos públicos e privados, quando estes últimos, devidamente constatados e provados, são odiosos. Porque sou mais inimigo que qualquer um dessa hipocrisia burguesa que pretende elevar um muro intransponível entre a vida pública de um homem e sua vida privada. Esta separação é uma ficção vazia, uma mentira, e uma mentira perigosa. O homem é um ser indivisível, e se em sua vida privada é um canalha, se em sua família é um tirano, se nas suas relações sociais, é um mentiroso, um enganador, um opressor e um explorador, deve ser também em seus atos públicos; se apresenta de forma diferente, se tenta dar a aparência de um democrata liberal ou socialista, amante da justiça, liberdade e igualdade, mente, e deve ter evidentemente a intenção de explorar as massas como explora aos indivíduos. Não é, portanto, apenas um direito, é um dever desmascarar, denunciando os atos infames de sua vida privada, quando tenham obtido provas irrefutáveis. A única consideração que pode impedir neste caso a um homem completo e honesto, é a dificuldade de contatar-los. dificuldade infinitamente maior para os feitos da vida privada que para os da vida pública.


Mas esta é uma questão de consciência, do discernimento e do espírito de justiça do que crê dever denunciar um indivíduo qualquer à reprovação pública. Se o faz, não impulsionado por um sentimento de justiça, mas sim por maldade, por malícia, inveja ou ódio, tanto pior para ele. Mas não deve se permitir a nada que se denuncie sem provar; e quanto mais séria é uma acusação, tanto mais provas devem ser apresentadas também em apoio a acusação. O que acusa outro homem de infâmia deve ser considerado como um infame ele mesmo, e é, com efeito, se não suportar esta terrível denúncia com provas irrefutáveis.




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