sábado, 31 de maio de 2014

Bakunin 200 anos - O Socialismo Humanista, Mikhail Bakunin


Findando a divulgação dos textos em relação ao bicentenário de Bakunin traduzidos pelo GEAPI, disponibilizamos um feito pelo próprio punho do anarquista russo.

Este texto perfaz o III capítulo do livro "Incitar la acción", de Mikhail Bakunin, editado pela Terramar Ediciones, Buenos Aires: 2013.

Tenham uma boa leitura!

O Socialismo Humanista

O homem frente ao Estado.
Mas o que é permitido ao Estado, é proibido ao individuo. 
Tal é a máxima do governo. Maquiavel e a história disseram, o mesmo que a prática de todos os governos atuais, lhe dão razão. O crime é uma condição necessária para a existência do Estado, que se apropria de seu monopólio exclusivo, donde resulta que o indivíduo que se atreve a cometer um crime é culpado duas vezes: primeiro, contra a consciência humana, e logo, então, contra o Estado, que usurpa um dos seus mais preciosos privilégios.

Individualismo e anti-humanismo
Eu entendo por individualismo essa tendência que - considerando toda a sociedade, a massa de indivíduos, a dos indiferentes, a dos rivais, a dos concorrentes, bem como os inimigos naturais, em uma palavra, com os quais cada um está obrigado a viver, mas que obstruem o caminho para cada um - impulsiona o indivíduo a conquistar e estabelecer o seu próprio bem-estar, a prosperidade, a felicidade, contra todo o mundo, em detrimento de todos os outros. É uma perseguição furiosa, em geral, que "Salve-se quem puder!", em que cada um tenta chegar primeiro. "Ai daqueles que param, se estão adiantados!" "Ai daqueles que, esgotado pelo cansaço, caem no caminho!, são imediatamente esmagados.
A concorrência não tem coração, não tem piedade.
Ai dos vencidos! Nesta luta necessariamente devem cometer-se muitos crimes; toda essa luta fratricida não é senão um crime permanente contra a solidariedade humana, que é a única base de toda a moralidade. O Estado que -se diz- o representante e o defensor da justiça, não impede a prática de tais crimes; pelo contrário, os perpetra e os legaliza. O que ele representa, o que ele defende, não é a justiça humana, é a justiça jurídica, que nada mais é que a consagração do triunfo dos fortes sobre os fracos, dos ricos sobre os pobres. O Estado não exige mais do que uma coisa: que todos esses crimes sejam realizados legalmente. Eu posso arruiná-los, matá-los, mas devo fazer observando as leis. Caso contrário, eu sou declarado criminoso e tratado como tal. Este é o significado deste princípio, desta palavra: Individualismo.

O homem moderno, degradado
Considerado do ponto de vista da sua existência terrena, ou seja, não fictícia, mas real, a massa dos homens apresenta um espetáculo de tal forma degradante, tão melancolicamente pobre de iniciativa, vontade e espírito, que é preciso estar dotado verdadeiramente de uma grande capacidade de iludir-se para encontrar neles uma alma imortal e a sombra de um livre-arbítrio qualquer. Se representam para nós como seres absolutos e fatalmente determinados: determinados principalmente pela natureza externa, pela configuração do solo e por todas as condições materiais de sua existência; determinados pelas muitas relações políticas e sociais, religiosas, pelos hábitos, costumes, leis, para um mundo de preconceitos ou de pensamentos  elaborados lentamente pelos séculos passados, e que se encontram no nascer da vida em sociedade, da qual eles nunca foram os criadores, senão primeiramente os produtos, e depois os instrumentos. Sobre mil homens apenas se encontrará um do que se possa dizer, do ponto de vista não absoluto, mas apenas o relativo, que quer e que pensa por si mesmo. A grande maioria dos indivíduos humanos, não só nas massas ignorantes, mas também nas classes privilegiadas, não querem e não pensam mais que o que todo mundo quer e pensa ao seu redor; creem sem dúvida querer e pensar por si mesmos, mas só servem para fazer reaparecer servilmente, rotineiramente, com modificações completamente imperceptíveis e nulas, os pensamentos e as vontades dos outros. Este servilismo, essa rotina, fontes inesgotáveis de trivialidade, essa ausência de rebelião na vontade de iniciativa, no pensamento dos indivíduos, são as principais causas da lentidão desoladora do desenvolvimento histórico da humanidade.

Humanismo e cientificismo
A ciência é tão pouco capaz de aprender a individualidade de um homem como a de um coelho. Isto é, é tão indiferente para uma quanto para outra. Não é que ignore o princípio da individualidade. O concebe perfeitamente como princípio, mas não como um fato. Sabe-se muito bem que todos os animais, incluindo a espécie humana, não tem existência real mais que em um número indefinido de indivíduos que nascem e morrem, abrindo espaço para novos indivíduos igualmente passageiros. Sabe que a medida que se eleva das espécies animais às espécies superiores, o princípio da individualidade é determinada mais, os indivíduos parecem mais completos e mais livres. Sabe, enfim, que o homem, o último e mais perfeito animal da terra, apresenta a individualidade mais completa e mais digna de consideração, por causa de sua capacidade de conceber e realizar, de personificar, de certo modo em si mesmo, e em sua existência tanto social como privada, a lei universal. Sabe, quando não está viciada pelo doutrinalismo teológico, metafísico, político ou jurídico, ou mesmo por orgulho estritamente científico, e quando não é surda aos instintos e às aspirações espontâneas da vida, sabe, e essa é a última palavra, que o respeito pelo homem é a lei suprema da humanidade, e que o grande, o verdadeiro fim da história, o único legítimo, é a humanização e a emancipação, é a verdadeira liberdade real, a prosperidade real, a felicidade de cada indivíduo que vive em sociedade. Porque, afinal de contas, a menos de voltar a cair na ficção sempre fundada no sacrifício sistemático das massas populares, é preciso reconhecer que a liberdade e a prosperidade coletivas não são reais, mas que quando elas representam a soma de liberdade e prosperidade individual.
A ciência sabe tudo isso, mas não vai, não pode ir mais longe. Ao constituir a abstração sua própria natureza, pode muito bem conceber o princípio da individualidade real e viva, mas não poder ter nada a ver com indivíduos reais e viventes. Se ocupa dos indivíduos em geral, mas não de Pedro ou de Santiago, não, deste ou daquele indivíduo, que não podem existir para ela. Seus indivíduos não são, digamos até mais do que abstrações.
Portanto, não são essas individualidades abstratas, senão os indivíduos reais, viventes, passageiros, os que fazem a história. As abstrações não tem pernas para marchar, não marcham mais que quando são levadas por homens reais. Para esses seres reais, compostos, não somente de ideias, mas realmente de carne e sangue, a ciência não tem coração. Os considera no máximo como carne de desenvolvimento intelectual e social. O que importa as condições particulares e a sorte fortuita de Pedro e Santiago? Seria ridículo, abdicaria, se aniquilaria se quisesse ocupar-se delas de outro modo que como de um exemplo em apoio de suas teorias eternas. Seria ridículo querer fazê-lo, porque não é a sua missão. Não pode perceber o concreto; Não pode se mover mais do que em abstrações. Sua missão é resolver a situação das condições gerais para a existência e do desenvolvimento seja da espécie humana em geral, seja de tal raça, se tal povo, de tal classe ou categoria de indivíduos, das causas gerasis, de sua prosperidade ou de sua decadência, e dos meio gerais para fazê-los avançar em toda sorte de progressos. Sempre que realize ampla e racionalmente este trabalho, terá cumprido todo o seu dever, e seria verdadeiramente ridículo e injusto exigir-lhe mais.
Mas seria igualmente ridículo, seria desastroso confiar-lhe uma missão que não é capaz de executar. Posto que sua própria natureza a força a ignorar a existência e a sorte de Pedro e Santiago, não há que permitir, nem a ela nem a nada em seu nome, governar Pedro e Santiago. Porque seria muito capaz de tratar-los pouco mais ou menos que como trata os coelhos. Ou muito bem continuaria ignorando-os; mas seus representantes patenteados, homens, de nenhum modo abstratos, se não ao contrário, muito vivos, que tem interesses muito reais, cedendo à influência perniciosa que exerce fatalmente o privilégio sobre os homens, acabaria por  esgotá-los em nome da ciência, como têm-se esgotado até aqui os sacerdotes, os políticos de todas as cores e os advogados, em nome de Deus, do Estado e do direito jurídico.
O que eu prego é, pois, a´te certo ponto, a rebelião da vida contra a ciência, ou melhor, contra o governo da ciência. Não para destruir a ciência - isto seria um crime que lesa a humanidade-, mas para pô-la em seu posto, de maneira que não possa voltar a sair dele. Até o presente toda a história humana não foi mais que uma imolação perpétua e sangrenta de milhões de pobres seres humanos a uma abstração impiedosa: Deus, Pátria, o poder do Estado, honra nacional, direitos históricos, direitos jurídicos, liberdade política, bem público. Tal tem sido até agora o movimento natural, espontâneo e fatal das sociedades humanas. Nós podemos fazer qualquer coisa, temos de aceitá-la como no passado, quando aceitamos todas as fatalidades naturais. É necessário acreditar que este era o único caminho possível para a educação da espécie humana. Porque não há que se enganar: ainda cedendo a parte maior aos artifícios maquiavélicos das classes governantes, devemos reconhecer que nenhuma minoria teria sido bastante poderosa para impor todos esses terríveis sacrifícios às massas, se não tivesse havido nessas próprias massas um movimento vertiginoso, espontâneo, que as levassem sempre a sacrificarem-se sempre de novo a uma dessas abstrações, como vampiros da história, sempre se alimentado com sangue humano.
Que os teólogos, políticos e juristas fazem isso muito bem, se concebe. Sacerdotes destas abstrações, eles vivem mais que esse contínuo sacrifício das massas.
Que a metafísica dê também seu consentimento à isso, não deve surpreender ninguém. Não tem outra missão senão a de legitimar e racionalizar tudo o que é iníquo e absurdo. Mas que a própria ciência positiva mostrou até aqui as mesmas tendências, eis o que podemos constatar e deplorar. Não foi capaz de fazê-lo por duas razões: primeiro, porque, constituída na margem da vida popular, está representada por um corpo privilegiado; e porque ela colocou a si mesma, até aqui, como o fim absoluto e último de todo o desenvolvimento humano; enquanto que, por uma critica criteriosa, de que é capaz e que em última instância se verá forçada a executar contra si mesma, ela deveria ter entendido que é realmente  um meio necessário para a realização de um fim muito mais elevado: o da completa humanização da situação real de todos os indivíduos reais que nascem, vivem e morrem na terra.
A grande vantagem da ciência positiva sobre a teologia, a metafísica, a política e o direito jurídica consiste nisto: Que em vez das abstrações mentirosas e funestas pregadas por estas doutrinas, representa abstrações verdadeiras que experimentam a mesma natureza geral ou a lógica das coisas, suas relações gerais e as leis gerais do seu desenvolvimento. Eis o que a separa profundamente de todas as doutrinas e precedentes, que irá sempre garantir uma grande posição na sociedade humana. Constituirá de certo modo sua consciência coletiva. Mas há um aspecto nesta que a associa absolutamente a todas essas doutrinas: Que não tem e não pode ter por objeto mais que as abstrações, e esforçada, por sua própria natureza, a ignorar os indivíduos reais, fora dos quais ainda as abstrações mais verdadeiras não tem existência real. Para remediar este defeito radical, aqui está a diferença que deverá estabelecer-se entre a ação prática das doutrinas precedentes e a ciência positiva. As primeiras prevaleceram da ignorância das massas para sacrificá-las com voluptuosidade a suas abstrações, por outra forma sempre muito lucrativas para os seus representantes corporais. Em segundo lugar, reconhecendo sua incapacidade absoluta de conceber os indivíduos reais e interesse em seu destino, deve definitiva e absolutamente renunciar ao governo da sociedade, pois se se misturasse nele, não poderia fazer de outro modo que sacrificando sempre os homens viventes, que ignore a suas abstrações, que formam o único objeto de suas preocupações legítimas.
A verdadeira ciência da História, por exemplo, ainda não existe, e apenas se começa hoje a entrever as condições imensamente complicadas dessa ciência. Mas suponhamo-la emfim realizada: O que pode nos dar? Reproduzirá o quadro fundamentado e fiel do desenvolvimento natural das condições gerais, tanto materiais como ideais, tanto econômicas como políticas, das sociedades que tenham tido uma história. Mas esse quadro universal da civilização humana, por mais detalhado que seja, não poderá nunca conter mais que apreciações gerais e por conseguinte, abstratas, neste sentido, que os milhares e milhões de indivíduos que formaram a matéria viva e suficiente dessa história, triunfante e fúnebre do ponto de vista da imensa hecatombe de vítimas humanas "esmagadas sob seu carro", que esses milhares de milhões de indivíduos obscuros, mas que sem os quais não teria se obtido nenhum desses resultados abstratos da história, e que, note-se bem, não aproveitaram jamais nenhum desses resultados, que estes indivíduos não encontraram o menor quadrado na História. Eles viveram, foram sacrificados para o bem da humanidade abstrata, eis tudo...
Por um lado, a ciência é essencial para a organização racional da sociedade; por outro, incapaz de interessar o que é real e vivo, não ser misturada na prática da organização ou sociedade.
Essa contradição não pode ser resolvida mais que de um só modo: a liquidação da ciência como ser moral existente na margem da vida social de todo o mundo, e representada como por um corpo de sábios patenteados, e sua difusão nas massas populares. Sendo chamada a ciência daqui em diante a representar a ciência coletiva da sociedade, deve realmente converter-se em propriedade de todo o mundo. Por isso sem perder nada de seu caráter universal, de que não poderá jamais separar-se, sob a pena de parar de ser uma ciência, e enquanto continua lidando exclusivamente com as causas gerais, as condições gerais e as relações gerais de indivíduos e coisas, se fundirá na realidade com a vida imediata e real de todos os indivíduos humanos.

Homem, Liberdade e Trabalho 
É unicamente pelo pensamento de que o homem se torna consciente de sua liberdade no meio natural de que é o produto; mas é só pelo trabalho que a realiza. Observamos que a atividade que constitui o trabalho, ou seja, o trabalho tão lento da transformação da superfície de nosso globo pela força física de cada ser vivo, conforme as necessidades de cada um, se encontra mais ou menos desenvolvida em todos os graus da vida orgânica.
Mas não começa a constituir o trabalho propriamente humano mais que quando, dirigido pela inteligência do homem e da sua vontade reflexiva, serve a satisfação, não somente das necessidades fixas e fatalmente circunscritas da vida exclusivamente animal, mas mesmo das do ser pensante, que conquista a sua humanidade afirmando e realizando sua liberdade no mundo.

Homem político, homem moral
Compreendo e encontro perfeitamente legítimo, útil, necessário, que se ataque com muita energia e paixão, e não só com teorias contrárias, mas também as pessoas que os representam, em todos seus atos públicos e privados, quando estes últimos, devidamente constatados e provados, são odiosos. Porque sou mais inimigo que qualquer um dessa hipocrisia burguesa que pretende elevar um muro intransponível entre a vida pública de um homem e sua vida privada. Esta separação é uma ficção vazia, uma mentira, e uma mentira perigosa. O homem é um ser indivisível, e se em sua vida privada é um canalha, se em sua família é um tirano, se nas suas relações sociais, é um mentiroso, um enganador, um opressor e um explorador, deve ser também em seus atos públicos; se apresenta de forma diferente, se tenta dar a aparência de um democrata liberal ou socialista, amante da justiça, liberdade e igualdade, mente, e deve ter evidentemente a intenção de explorar as massas como explora aos indivíduos. Não é, portanto, apenas um direito, é um dever desmascarar, denunciando os atos infames de sua vida privada, quando tenham obtido provas irrefutáveis. A única consideração que pode impedir neste caso a um homem completo e honesto, é a dificuldade de contatar-los. dificuldade infinitamente maior para os feitos da vida privada que para os da vida pública.


Mas esta é uma questão de consciência, do discernimento e do espírito de justiça do que crê dever denunciar um indivíduo qualquer à reprovação pública. Se o faz, não impulsionado por um sentimento de justiça, mas sim por maldade, por malícia, inveja ou ódio, tanto pior para ele. Mas não deve se permitir a nada que se denuncie sem provar; e quanto mais séria é uma acusação, tanto mais provas devem ser apresentadas também em apoio a acusação. O que acusa outro homem de infâmia deve ser considerado como um infame ele mesmo, e é, com efeito, se não suportar esta terrível denúncia com provas irrefutáveis.




sexta-feira, 30 de maio de 2014

Bakunin 200 anos - Gastón Leval, A pedagogia de Bakunin



Dando prosseguimento a divulgação dos textos sobre Mikhail Bakunin traduzidos recentemente pelo GEAPI, disponibilizamos o de Gastón Leval, A pedagogia de Bakunin, publicado originalmente na Revista Libertaria Reconstruir, número 100, janeiro-fevereiro de 1976 (Buenos Aires, Argentina), e traduzido para o português pelo Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí.
Nele é discorrido uma sequência de reflexões de Bakunin acerca da educação, demonstrando que o "homem das barricadas", como ficou conhecido o anarquista russo, também construiu reflexões acerca do tema, e de outros vários.


A pedagogia de Bakunin

Todas as atividades revolucionárias e problemas filosóficos essenciais que se ocupou Bakunin poderiam fazer-nos pensar que ele não teve tempo para contribuir com reflexões acerca dos problemas da instrução e educação de real valia. Mas nos preocupamos aqui com um homem a quem não se deve avaliar por normas comuns.
Não nos surpreenderá, portanto, que tenha se interessado por outros problemas que os já mencionados até agora (luta em barricadas, ataques a toda religião ou igreja, ao Estado, ao capitalismo, a filosofia escolástica; fundação do movimento socialista revolucionário internacional, preparação revolucionária em diferentes países, influência sobre a juventude russa, etc.). Teve também teve tempo para pensar sobre a pedagogia, enquanto que os direitos da criança, tema que então, exceto Froebel, fundador dos jardins de infância, e Pestalozzi, não parecia interessas aos sociólogos e menos ainda aos homens do Estado.
Não propõe Bakunin novas técnicas de ensino. Esta não é a sua missão. Fornece conceitos e princípios dos quais o pedagogo suíço Ferriére parece estar impregnado, e que poderiam inspirar a pedagogia contemporânea, pois as realizações mais ousadas são deixadas para trás se comparadas com o que ele defendeu, e duvidamos que a sociedade humana, por mais perfeita que seja, possa razoavelmente ir mais longe sem perdas.
O ponto de partida, segundo expressa, é que “a escola deve substituir” a igreja, com a enorme diferença que esta, para espalhar a sua educação religiosa, não persegue outro objetivo que eternizar o regime de exploração do homem pelo homem e da autoridade supostamente divina, enquanto a educação e a instrução da escola, ao não perseguir outros fins senão a educação real das crianças com vistas em sua maturidade, não será senão sua preparação gradual e progressiva para a liberdade, e o triplo desenvolvimento de suas forças físicas, de seu espírito e de sua vontade.
"A razão, a verdade, a justiça, o respeito humano, a consciência da dignidade pessoal, a solidariedade, inseparável do respeito a todos os seres humanos; o amor à liberdade para com ele mesmo e para com os demais, o culto ao trabalho como base e condição do direito, o desprezo à demagogia, a mentira, a injustiça, a covardia, a preguiça, tais deveriam ser a base fundamental da educação pública. Deve acima de tudo, formar homens, depois trabalhadores especializados e cidadãos, e à medida que se adiante a idade das crianças, a autoridade será cada vez mais substituída pela liberdade, a fim de que os adolescentes, ao atingirem a maioridade e sendo emancipados de acordo com a regra geral, podem ter esquecido como em sua infância haviam sido criados e educados de outro modo que pela liberdade.”
Bakunin insiste muito particularmente na educação, no sentido de formar “primeiro homens, depois trabalhadores especializados", podemos dizer, homens, antes que técnicos e a fórmula nos parece oportuna ante ao esquecimento do espírito em benefício da máquina. Foi Tolstoi em sua escola de Yasnaya-Polyana; foi Tagore, que reacionava contra a transformação do ser humano em papagaio e o abarrotamento dos cérebros em detrimento de consciência e da sensibilidade dos indivíduos. Comparar Bakunin com Tagore pode parecer excessivo, mas havia nele um Tagore, como havia um Spartacus.
Para formar o caráter e da consciência, a escola deve considerar a personalidade da criança. A pedagogia teórica tem sido lenta para saber, porque as condições em que Rousseau criava seu Emílio não eram aplicáveis às coletividades escolares, mas sim aos filhos dos privilegiados que tinham cada um quatro professores. O conjunto das crianças não podia ter esta sorte não somente por questões técnicas, mas também porque é com a prática da solidariedade que os indivíduos se tornam sociáveis, e se se devem formar indivíduos com personalidade própria, há que formar também homens aptos a viver com seus semelhantes. Contudo, este objetivo não implica a existência de escolas em forma de quartel, nem que a disciplina destrua a iniciativa. E como é sobre tudo o que se faz em conjunto do sistema de conventos ou do Estado, Bakunin salientou que aparece como o mais necessário:
"Para ser perfeita, a educação deverá ser mais individualizada do que é agora, individualizada no sentido de liberdade, e unicamente mediante o respeito da liberdade, mesmo com crianças, deverá ter por objetivo, não o adestramento do caráter, da inteligência e do coração, mas sim seu despertar a uma atividade independente e livre, nem outro culto, que é outra moralidade, outro objetivo que o respeito da liberdade de cada um e de todos, a simples justiça, não jurídica, mas a humana, a simples razão, não a teológica, nem metafísica, mas sim a científica, e o trabalho tanto físico como intelectual, como base obrigatória para todos de toda dignidade, de toda liberdade, de todo direito".
"Tal educação amplamente estendida em benefício de todos, tanto para as mulheres, como para os homens, em novas condições econômicas e sociais, faria desaparecer muitas supostas diferenças naturais".
N'O Catecismo Revolucionário (i), Bakunin preconizava uma autoridade que se atenuava gradualmente na medida em que a criança se elevava à altura de sua liberdade consciente. Repete as mesmas ideias em O Império Knuto-Germânico e a Revolução Social:
"A autoridade é necessária durante os primeiros anos de vida, mas sendo todo progresso a negação do ponto de partida (ii), a liberdade acaba necessariamente por triunfar, pois o objetivo final da educação é formar homens livres cheios de respeito e amor pela liberdade dos outros".
A Pedagogia de Bakunin é, portanto, profundamente humanista.
Chegamos ao ensino secundário e superior. E é interessante constatar que as ideias de Bakunin foram o que tempos depois os teóricos da pedagogia chamaram na França de Escola única.
Em primeiro lugar, Bakunin parece visivelmente inspirado no método que serviu ao desenvolvimento do pensamento de Auguste Comte, e sob esta influência fala de filosofia positiva onde se trata de filosofia científica experimental. Mas os princípios conseguintes são de Bakunin.
"A instrução científica terá por base o estudo da natureza e por coroação a sociologia, deixando de ser o dominador e violador da vida, como é sempre em todos os sistemas metafísicos e religiosos, o ideal não será à frente senão a última e mais bela expressão do mundo real, deixando de ser um sonho, voltará como realidade" (iii).
Por mais individualizada que seja a educação, cujos fins são como vimos, iminentemente sociais, a instrução científica nos leva à humanidade. É, mais uma vez, humanista ante tudo, e seu humanismo está posto a serviço dos que são e serão. Bakunin defendia duas fases subsequentes: A da cultura pura, que põe em contato homens e mulheres jovens com o saber geralmente considerado, e que depois desta, conduz à profissão:
"Nenhuma inteligência, por maior que seja é capaz de abarcar todas as ciências; e por outra parte, sendo o conhecimento geral absolutamente preciso para o desenvolvimento completo dos espíritos, o ensino se dividirá naturalmente em duas partes: A geral, que proporcionará os elementos principais de todas as ciências vistas em conjunto, e a especializada, necessariamente dividida em vários grupos, cada um dos quais abarcará em todas as especialidades certo número de ciências que, por sua afinidade, são chamadas a completarem-se".
Tal separação e tal especialização do ensino científico, que se mostra tão necessária quando vemos o conceito estreito de educação em nossos dias, já não estão inspirados por Auguste Comte. Bakunin as concebe em um plano onde o método de trabalho corresponde ao desenvolvimento prodigioso dos acontecimentos que foram atingidos, e que se distanciam ainda de ter alcançado seu apogeu. Mas segue desenvolvendo seu pensamento, dando sempre o primeiro lugar ao humanismo.
"A primeira parte, a parte geral, será obrigatória para todas as crianças; constituirá, se assim podemos dizer, a educação humana de seu espírito, substituindo completamente a metafísica e a teologia e situando os educandos a uma altura suficiente para que, ao chegar à idade da adolescência, possam eleger com pleno conhecimento de causa a especialização que melhor se adapte a suas habilidades e gostos".
Os adolescentes podem equivocar-se ao escolher o seu papel na sociedade. Esta hipótese perfeitamente fundamentada nos permite ver uma vez mais o papel da autoridade dos pais para seus filhos, Bakunin é categórico: "Detestamos e condenamos com toda a força de nosso amor às crianças, a autoridade paternal, tanto como a do mestre da escola". E se revolta quando uns e outros, "determinando arbitrariamente o futuro das crianças obedecem muito mais aos seus gostos pessoais que as aptidões das crianças". Por fim, considerando que "as faltas cometidas pelo despotismo são sempre mais funestas e difíceis de alterar que as cometidas pela liberdade, mantemo-nos contra os tutores oficiais, oficiosos, paternais e pedantes do mundo, a liberdade plena e inteira das crianças elegerem e determinar sua existência".
Bakunin expunha essas ideias e discutia estes problemas há mais de um século, em 1869, em um jornal lido por trabalhadores manuais e, não esqueçamos, em uma série de artigos intitulados “A instrução Integral”. Parece-nos digno de ser notado que vários dos homens notáveis que foram seus parceiros na Aliança (Paul Robin, Ferdinand Buisson (iv), James Guillaume), após ter se retirado da luta ante a invasão dos socialistas autoritário marxistas, consagraram suas vidas para os problemas pedagógicos, oferecendo suas contribuições para a educação; aos nomeados podemos acrescentar Claparede, que não pertenceu à Aliança, mas que estava em contato com Bakunin. Este não se limita ao que já mencionamos, e nos expõe alguns aspectos complementares ao seu pensamento:
"A educação industrial, ou prática, deverá ser dada ao mesmo tempo em que o ensino científico ou teórico. O mesmo que a educação científica, o ensino industrial compreenderá uma primeira parte na que a criança ‘adquirirá o conhecimento geral e prático de todas as indústrias, tanto como a sua ideia de conjunto, que constitui a civilização, enquanto que material, a totalidade do trabalho humano; e a parte especial, dividida em grupos de indústrias mais particularmente ligadas entre si’.
Aqui Bakunin estava à frente em três quartos de século ao que começou a ser praticado nas escolas profissionais dos países mais avançados. Mas que só procuravam fazer produtores, enquanto que Bakunin queria, ao mesmo tempo, dar uma ideia de conjunto do que constituía a "civilização enquanto que material, a totalidade do trabalho humano", e introduzir na aprendizagem de um ofício um conteúdo que não se refere ainda e não parece disposto a referir-se aos técnicos das escolas profissionais. Esta diferença é suficiente para demonstrar a diversidade de espírito que conduz por uma parte a automatização do homem, e por outra a humanização do produtor e do trabalho.
Ainda assim, Bakunin introduz o ensino moral especial no ensino geral. Como em outros casos, não teve tempo para desenvolver o seu sistema, mas as notas que nos deixou provam que também tinha refletido sobre esta importante questão:
"A moral divina é imoral, fundada em dois princípios: O respeito à autoridade e desprezo pela humanidade. Por outro lado, a moral humana é baseada unicamente em respeito à liberdade e à humanidade. A moral divina considera o trabalho como uma indignidade e como castigo; a moral humana vê nele a condição suprema da felicidade do homem e da dignidade humana. Consequentemente, a moral divina conduz a uma política que só admite os direitos dos que por sua posição econômica privilegiada podem viver sem trabalhar. A moral humana só os admite para os que vivem trabalhando; reconhece que só trabalhando o homem tem acesso à humanidade".
Do mesmo modo que não enumera as normas do ensino técnico e científico, Bakunin não diz no que deveria consistir essa "série de experiências sucessivas", ou seja, as aplicações práticas mediantes as quais deveria dar-se o ensino moral. Mas basta com que forneça os princípios. Aos pedagogos, os professores, os mestres, lhes tocam encontrar os procedimentos adequados de acordo com as épocas e as situações, procedimentos que ao procurar a realização de tão altos princípios deveriam ser tão amplos como a vida e como as relações dos homens em coletividade.

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i Documento escrito em 1863, inédito até agora, e só reproduzido em "Life of Bakunin", obra poligrafada por Max Nettlau.
ii Restos da dialética hegeliana que se encontrava às vezes em Bakunin.
iii Do estudo "O ensino integral".
iv Que foi um dos mais brilhantes ministros da instrução pública, e de quem James Guillaume foi colaborador. Enquanto Paul Robin, organizou na França a primeira escola mista entre os sexos e foi por este título o pioneiro da educação mista.


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Bakunin 200 anos - Ángel Cappelletti, A evolução do pensamento político e filosófico de Bakunin


Começaremos a partir de agora a divulgação da tradução de textos cuja temática é Mikhail Bakunin, em comemoração a seu bicentenário. Bakunin é um dos principais pensadores do anarquismo, cuja contribuição é significativa para a compreensão desta filosofia e ideologia política.

É importante ressaltar o déficit de textos, artigos e livros do anarquista russo, não por falta destes, mas de traduções na língua portuguesa. Estima-se que menos de 20% das suas obras estão a disposição do público que fala português, e boa parte ainda não foi sequer estudada. Mikhail Alexandrovich Bakunin, nascido em Premukhino no dia 30 de maio de 1814,  ainda tem muito a nos dizer.

A priori, divulgaremos um texto de 1983, reproduzido na revista argentina Polêmica, pelo filósofo Ángel Cappelletti, intitulado "A evolução do pensamento filosófico e político de Bakunin". O texto faz um levantamento histórico e filosófico das principais influências de Bakunin ao longo de sua vida. Boa leitura!



A evolução do pensamento filosófico e político de Bakunin

Ao contrário de Kropotkin, em cujo pensamento não houve mudanças bruscas e radicais (exceto seu afastamento da concepção tradicional do mundo e sua ruptura com a fé cristã), Bakunin teve uma longa evolução, tanto filosófica e religiosa como sócio-política.
Ele pode reconhecer três fases distintas: Nada pode se reconhecer três etapas bem definidas:
1. A etapa idealista metafísica, que vai de 1834 a 1841.
2. A etapa idealista-dialética, que se estende de 1842 até 1864.
3. A etapa materialista, que compreende de 1864 até sua morte, em 1876.
Se prescindirmos os anos de sua infância e adolescência, nos quais Bakunin, ainda filho de uma aristocracia relativamente liberal, educado em universidades do ocidente, recebe a educação própria de todo educando da nobreza da época, e aceita a doutrina cristã de acordo com a interpretação da Igreja Ortodoxa (o que implica o reconhecimento do direito sagrado do czar a governar seu império), pode-se dizer que o seu pensamento desperta por volta de 1834, ou seja, quando tem vinte anos, graças ao contato com a filosofia idealista alemã.
Nicholas Stankevich, poeta e filósofo infeliz, o inicia na leitura árdua de Kant. Através de uma correspondência muito extensa, cujos destinatários principais eram suas irmãs, o jovem Mikhail demonstra um entusiasmo quase sem limites para a filosofia transcendental. Pode-se dizer que, na primeira fase idealista, o Kantismo constitui a primeira sub-eatapa. Esta se inicia com a visita de Stankevich à Premukhino, em outubro de 1835. Bakunin estuda a Crítica da Razão Pura. No ano seguinte (1836), o entusiasmo metafísico, atingindo níveis místicos, como evidenciado pelas cartas da época, se move até Fichte. É a exaltação da moralidade absoluta, do Eu como criador do mundo espiritual. Aqui está a segunda sub-etapa. Lê o Guia vida feliz e traduz o tratado Sobre o destino dos sábios. Convém advertir que em Fichte, para o qual nenhuma ação pode ser considerada moral se responde um imperativo fora do EU, poderia encontrar já o jovem Bakunin e um germe de sua afirmação anarquista da personalidade como um valor supremo.
Por uma evolução bastante lógica e até mesmo, necessária, de Fichte passa para Hegel (1837). A atitude de euforia metafísica e entusiasmo místico continuam ainda e torna-se mais ardente. É um Hegel romântico, no qual a laboriosa trama dialética importa menos que o âmbito ontológico, de um Hegel feito na medida para quem deseja revolucionar o pensamento sem nada transformar a realidade social e política. Este é, sem dúvida, um Hegel bastante diferente do que cultivam os jovens hegelianos; o Hegel da direita hegeliana, o Hegel quiçá do próprio Hegel, ainda que intelectualmente diluído e minimizado. É a terceira sub-etapa. Lê a Fenomenologia, a Enciclopédia e a Filosofia da Religião. Hegel traduz fragmentos de Marheincke de Göschel (Jeanne-Marie, Michel Bakunin, Une vie d'homme, Geneve, 1976, p. 33).
O Hegelianismo serve naquela época (década de 30) na Rússia como ferramenta intelectual nova, e adequado instrumento para justificar a autocracia czarista. O princípio da racionalidade do real conclui sustentando a racionalidade do Estado e do estado absoluto.
Não há dúvida no Bakunin destes anos, segundo o que pode inferir-se em sua correspondência, o mais rápido toque de crítica social ou política, senão mais uma adesão pelo menos tácita ao status quo. Todo o seu entusiasmo é reservado para a metafísica, o que importa é a espiritualidade transcendente e a infinitude interior. Mais ainda, segundo observa em seus cadernos hegelianos (citado por Carr), acredita que "não existe o mal, o bem está em toda parte. O único mal é a limitação do olho espiritual. Toda a existência é a vida do Espírito, tudo está penetrado pelo Espírito, nada existe além do Espírito, o Espírito é o conhecimento absoluto, a liberdade absoluta, amor absoluto e, portanto, a felicidade absoluta".
A segunda etapa ou época da evolução do pensamento de Bakunin começa com a sua viagem a Berlim, para fazer ali os cursos universitários de filosofia, ou melhor, dizendo, com a sua saída de Berlim em 1842.
Em 1840, o jovem aristocrata, que teve sérios conflitos com seu pai e renunciou à sua carreira militar, preferindo ser soldado de baixa patente da filosofia alemã ao invés de oficial de artilharia russa, inicia o contato direto com importantes figuras do idealismo. Não chega a se tornar um discípulo de Hegel, cujo qual já não leciona mais em Berlim, mas assiste as aulas Schelling, um dos três principais da filosofia pós-kantiana. Alguns historiadores sugeriram a possibilidade de que na sala de aula de Schelling, encontraram-se juntos em um momento dado, Bakunin, Stirner e Kierkegaard.
O ensino do velho filósofo, cada vez mais inclinado à mitologia e a teosofia, parece ter decepcionado as expectativas do ardente russo. Depois de um ano e meio aproximadamente, se cansa e decide abandonar os cursos universitários. Apesar de seu propósito inicial, para ir a Berlim, era o de completar seus estudos lá até o doutorado e em seguida, retornar à terra natal para ensinar filosofia na Universidade de Moscou, tal propósito é inteiramente esquecido.
Disse E.H. Carr (Bakunin, Barcelona, 1970, p 120.): "O processo de metamorfose da rebelião doméstica em rebelião política que ocorreu em Bakunin na Alemanha de 1842 pode ser descrito nos termos simples da literatura e da filosofia germânica. Bakunin, junto com a maioria de seus compatriotas contemporâneos, tinha estado sujeito - antes de seu translado para a Alemanha - a duas importantes influências teutônicas: O romantismo alemão e a filosofia de Hegel. Quando chegou a Berlim, em 1840, essas influências seguiam desfrutando do maior apoio por pare dos alemães, e o ambiente intelectual que encontrou na Alemanha não era em essência diferente (ainda que, talvez, em nível mais elevado) do que havia deixado na Rússia. O primeiro ano de sua permanência em Berlim representou o final do seu período russo mais que o princípio de seu período europeu.
No ano de 1842, depois de sua viagem a Dresden, se inicia, pois, a segunda etapa da evolução do pensamento de Bakunin.
Como iniciador da primeira etapa foi Stankevitch, o segundo foi Ruge.
Este, que também exerceu forte influência sobre o jovem Marx, era uma espécie de porta-voz do da esquerda hegeliana através de seu jornal Hallische Jahrbu Cher.
Na verdade, chamados de "jovens hegelianos" eram radicais, dedicados sobretudo a crítica da cultura e da religião, para o qual se valiam do método dialético de Hegel, desestimando seu sistema metafísico. Não negavam que todo o real é racional, mas insistiam em enfatizar a ideias de que o mais real é o tornar (o que é produzido de acordo com um ritmo dialético), pelo qual a realidade (e, portanto, a racionalidade) deve ser concebida como uma perpétua transformação e nada é menos real do que a estagnação e a perpetuação do status. Assim, converteram o Hegel histórico que, pelo menos em seus últimos anos, se demonstrou um pensador altamente conservador e reacionário, em um verdadeiro filósofo da revolução. A dialética, nas mãos dos jovens hegelianos, se constitui assim como um aríete contra a tradição, a monarquia, a Igreja, o feudalismo, o Estado.
Sob o pseudônimo de Jules Elysard, o jovem russo publica o seu primeiro ensaio importante, A reação na Alemanha, um exemplo típico da literatura da esquerda hegeliana, e de acordo com Carr, "escrito mais conveniente e solidamente fundamentado que saiu da pena de Bakunin".
Com esta obra conclui a primeira sub-etapa do segundo período do pensamento de Bakunin, ou seja, a época em que é um membro da esquerda hegeliana strictu sensu. Deve ter-se em conta, entretanto, que no sentido geral segue sendo um dialético durante todo o segundo período, ou seja, durante vinte anos mais, ainda quando as referências explícitas a Hegel e a dialética sejam mais raras. Feuerbach, a partir daqui, nunca deixa de estar presente.
Assim como a primeira etapa juvenil, metafísica, que se desenvolveu na Rússia, pode denominar-se a etapa conservadora, do ponte de vista político-social (mesmo que se tratasse de um conservadorismo implícito) assim a segunda etapa inteira (já na Alemanha, já na França, já novamente nas prisões russas ou no exílio siberiano), que no filosófico se caracteriza por uma dialética bastante idealista, deve ser chamada no aspecto sócio-político, o período democrata-socialista.
A segunda sub-fase deste segundo período começa com a leitura do livro de Stein, O socialismo e o comunismo na França contemporânea, através do qual se põe em contato com as ideias de Saint-Simon, Leroux, Fourier e Proudhon. Quase ao mesmo tempo conhece o poeta Herwegh, quem o relaciona, por sua vez, com o movimento "da jovem Alemanha" e lhe apresenta a George Sand. Na verdade, é o momento de descoberta da cultura e do espírito francês para Bakunin. Durante sua permanência na Suíça conhece, no entanto, a obra, o pensamento, e mais tarde, a própria pessoa de G. Weitling, alfaiate, filho natural de um soldado Francês e uma donzela alemã que de certa maneira representa a síntese das duas nações que sucessivamente mais admirou Bakunin: Alemanha e França. O livro de Weitling, intitulado Garantias da harmonia e da liberdade (1842), defendia um comunismo que quase poderia chamar-se "anárquico", posto que, segundo ele, na sociedade ideal o governo é substituído pela administração e a lei pela obrigação moral. Em Paris, em 1844, conhece Lamennais e Leroux, Considerant, Cabet, Blanc, ou seja, o alto escalão do socialismo utópico. Mas conhece, acima de tudo, os dois homens que mais influirão na formação de seu pensamento definitivo e maduro, Karl Marx e Pierre Joseph Proudhon (um alemão e um francês, vale a pena lembrar), o primeiro como o polo negativo e o segundo como o lado positivo da sua atividade intelectual.
De qualquer forma, apesar de tudo o que aprende e de toda admiração que expressa por eles, não se pode dizer que Bakunin seja nestes anos marxista nem proudhoniano. Sua ideologia, um tanto difusa, corresponde melhor ao ambiente romântico democrata-socialista que precede a revolução de 1848 e, em termos muito gerais, a um idealismo ético-social cada vez mais distanciado na forma e na linguagem do idealismo dos jovens hegelianos, embora não inteiramente distante. Não sem razão, seu amigo e escritor Russo Belinski escreve sobre ele neste momento: "É um místico nato e morrerá sendo místico, idealista e romântico, porque tendo renunciado a filosofia não significa que tenha mudado de gênio". (citado por Carr).
A terceira sub-fase do segundo período, que começa com sua viagem para a Alemanha e sua assistência ao Congresso eslavo realizado em Praga, em Junho de 1848, caracteriza-se pela aparição (ou talvez se deva dizer, por ressurgência) do nacionalismo eslavo e do pan-eslavismo. As posições filosóficas permanecem as mesmas, ainda que cada vez mais fique mais implícitas, e tampouco negam os ideais democráticos e socialistas.
A diferença de muitos líderes políticos dos povos eslavos sujeitos a Turquia, que vêem no império russo a única força capaz de libertá-los do jugo muçulmano e que, por conseguinte, não tem objeções contra a autocracia czarista, Bakunin insiste, como os membros da Jovem Alemanha e como quase todos nacionalistas da época, em vincular o nacionalismo com a democracia. A luta essencial e a contradição básica se produz, segundo Bakunin e esta maioria de democratas nacionalistas, entre dinastia e pátria, entre Rei e nação, entre soberania do monarca e soberania do povo. Em termos políticos é a luta de um indivíduo (O monarca) e uma pequena minoria (os nobres) contra uma imensa maioria (o povo). Em termos éticos é nada menos que a luta entre o vil egoísmo e a generosa amplitude. "Pátria" é não somente liberdade mas também igualdade e fraternidade. Em contrapartida, neste momento, depois do fracasso da Revolução de 1848, se define já claramente sua atitude antiburguesa. Como se vê no Chamado aos eslavos, a burguesia constitui para ele uma classe essencialmente contrária a revolução, enquanto que os chamados a realizá-la são campesinos (classe sem dúvida amplamente maioritária no solo russo e os países eslavos, mas em toda Europa.
Desde maio de 1849 até agosto de 1861 permanece primeiro preso na Saxônia, depois na Áustria, logo na Rússia e, por fim, confinado na Sibéria. Sua atividade literária (se excetua a Confissão ao Czar) é praticamente nula durante toda esta época. Podemos inferir, sem dúvida, que ao chegar a Londres no ano de 1861 trai as mesmas ideias e propósitos que quando foi apreendido em 1849, posto que quase imediatamente se ponha a conspirar em prol da liberdade da Polônia e trabalha na preparação de uma expedição a este país. Parece que, durante doze anos, seu pensamento tenha sido congelado, um fato que não é difícil de explicar quando se tem em conta que a mente de Bakunin necessita de um estímulo dos fatos sociais para funcionar e para modificar a realidade, uma mudança importante - de fato, o mais importante de todos, posto que o conduz até sua forma última e mais característica - só se dá quando, fracassada a expedição à Polônia, Bakunin, desiludido com os nacionalistas polacos, se distancia também de todo nacionalismo, embora não sem pagar um tributo de admiração a Garibaldi, libertador da Itália, visitando-o em Caprera, no início do ano de 1864.
A terceira e última etapa de seu desenvolvimento intelectual começa pouco depois, em Florença, onde se encontra estabelecido. Caracteriza-se pelo materialismo e ateísmo no filosófico, o coletivismo em termos económicos, pelo anarquismo no política.
Fácil é advertir que esta evolução de Bakunin tem um sentido inverso a que ocorre com a maioria dos pensadores e militantes sociais ou políticos. Enquanto a maior parte dos que mudam e evoluem muitas vezes movem-se para a esquerda, a direita, o culto à revolução (ou, pelo menos, o reformismo) a reação e ao conservadorismo, ao passar da juventude para a idade madura e velhice, Bakunin passa, precisamente ao revés, desde o conformismo tradicional de sua adolescência até o anarquismo revolucionário dos últimos anos, do idealismo metafísico ao materialismo ateu ou antiteísta.
A terceira e última etapa da evolução do pensamento de Bakunin poderia ser subdividido, como os dois anteriores, em três sub-etapas:
A florentina (1864-1.865).
A Napolitana (1865-1867).
A suíça (1867-1876).
Aqui é sentido, por uma parte, a influência de Proudhon e Marx, por outro lado, o cientificismo materialista da época. A primeira sub-etapa pode ainda ser considerada como um momento de transição. O ateísmo, ou melhor, o antiteísmo já está claro. Escreve então: "Deus existe, portanto, o homem é seu escravo. O homem é livre, portanto não há Deus” (citado por Carr).
Não é difícil notar, além disso, que o ateísmo e materialismo em todo o último período não estão livres da influência da dialética hegeliana. A sombra desta persiste em Bakunin até o fim. E o seu materialismo, que, por contraste com Marx e Engels, muitas vezes chamado de "mecanicista", não deixa de ser também, em alguma medida, dialético. Igualmente, no terreno político, durante a primeira sub-etapa florentina, persistem algumas ideias e posturas nacionalistas. Diz E.A. Carr: 
“O entusiasmo para o nacionalismo italiano foi pensado por um momento que iria compensar a decepção sofrida pelas aspirações polonesas. Mas ele logo percebeu que foi uma compensação falsa. A vitória do nacionalismo, longe de trazer-se após a vitória da revolução, sequer arranhou a questão social. Uma vez liberada, no lugar de superar as demais nações em "prosperidade e grandeza", a Itália as superou somente em mendicância. Os principais dirigentes políticos foram perdendo sua veia revolucionária. Nem Garibaldi nem Mazzini tinham nada de revolucionários. Em sua perseguição de um ideal estavam conduzindo da maneira mais irresponsável, o mesmo que o outro lado. Se estava aproximando a hora em que os revolucionários de todos os países se veriam obrigados a defender seus postulados ante a retórica patriótica-burguesa ‘daqueles figurões’”.
Na realidade, como acrescenta o citado historiador: "O Catecismo Revolucionário é o primeiro documento em que se proclama a renúncia do nacionalismo como fator revolucionário e em que aparece delimitado claramente o credo anarquista de Bakunin". Mas nem sequer aqui mostra todas as consequências lógicas desse credo. Não há negação radical do Estado e nem uma rejeição categórica do parlamentarismo.
Em Florença, Bakunin funda uma fraternidade que, segundo Woodcock, "passou para a história como uma organização nebulosa", concebida como "uma ordem de militantes disciplinados, entregues a propagação da revolução.
O sub-etapa napolitana é refletida no citado Catecismo Revolucionário, que Bakunin escreve aos membros da outra organização, mais sólida e mais definitivamente anarquista em seu programa: A Fraternidade Internacional. Esta é a favor do federalismo e da autonomia comunal no político, do socialismo ou o coletivismo no socioeconômico, e declara impossível a revolução sem uso da força, ainda que em sua organização interna revele uma estrutura hierárquica e, como anota Woodcock, põe "uma ênfase nada libertária na disciplina interna".
Se a sub-etapa florentina pode ser considerada como a transição entre o nacionalismo e o anarquismo, a segunda, napolitana, deve ser caracterizada como a do federalismo coletivista ou socialismo anárquico incipiente, não inteiramente estranha às ideias que, de um ponto de vista lógico, são incompatíveis com o anarquismo , não totalmente desprovido de contradições e hesitações.
No final deste período, a intervenção pessoal de Bakunin no Congresso pela Paz e Liberdade, de Genebra, onde a princípio é muito bem recebido por Garibaldi e pela elite do liberalismo europeu, serve para mostrar a esta mesma elite intelectual e a Europa inteira, que o lutador russo já está além do liberalismo e da democracia e, definitivamente, passou para o campo da revolução social.
A terceira sub-fase, que ocorre em sua maior parte na Confederação Helvética, e se estende a partir deste Congresso, em 1867, até a morte, em 1876, pode ter-se como a época da consolidação do materialismo ateu, do coletivismo e do federalismo, isto é, da concepção anarquista de Bakunin.
Este período corresponde à fundação da Aliança Internacional da Democracia Socialista, cujo programa, como aponta Woodcock, é mais explicitamente anarquista que o da Fraternidade Internacional napolitana, e mostra a influência da Associação Internacional dos Trabalhadores. No início desta última sub-etapa de sua evolução ideológica e de sua vida, Bakunin escreve uma de suas obras mais orgânicas e representativas: Federalismo, Socialismo e Antiteologismo. Nela o mesmo título revela o programa e sintetiza o pensamento de seu autor:
No político, a abolição do Estado unitário centralizado, que deve ser substituído por uma federação de comunas livres e livremente federadas entre si.
No econômico, a socialização da terra e dos meios de produção, que terão de passar das mãos dos latifundiários e capitalistas às comunidades de trabalhadores (não ao Estado).
No filosófico, o materialismo baseado nas ciências da natureza e negação de toda divindade pessoal e de toda religião positiva.
O primeiro argumento é dirigido contra todas as ideologias de governo propriamente dito, mas especialmente contra o nacionalismo, que pretende uma república unitária, com Mazzini. O segundo ataca em geral a sociedade burguesa e capitalista, mas de um modo particular aos ideólogos que se conformam com a independência nacional e a democracia política, esquecendo a desigualdade social, a miséria popular, a exploração dos trabalhadores. A terceira impugna toda cosmovisão teísta e espiritualista, mas quer refutar de um modo direto as ideias religiosas de Mazzini e da "Falange Sacra".
Entre os três princípios, federalismo, socialismo, e antiteologismo encontra Bakunin um vínculo de interna solidariedade. Não se trata, para ele, como para Marx, de notar uma estrutura e uma superestrutura na sociedade. Não se trata de acabar primeiro com o capitalismo, para que ao fim se derrubem também o Estado e a religião. Trata-se, sim, de enfrentar a um único inimigo que tem três cabeças (três cabeças horrendas, por certo, segundo ele as vê): A propriedade privada (que é a sem razão e a prepotência econômica), o Estado (que é sem razão e a prepotência política) e a religião (que é sem razão e a prepotência. A vinculação entre os dois últimos se faz particularmente clara em outro escrito editado com o título de Deus e o Estado, depois da morte do seu autor, "é a luta contra Deus o que condiciona todos os combates contra o poder político: Resulta impossível abater o poder temporal, sem demolir ao mesmo tempo a religião. Toda a violência do ateísmo de Bakunin deriva desta razão".  (H. Arvon, Bakunin, Absoluto y Revolução, Barcelona, 1975, p. 55). Este ateísmo está sob o signo de Feuerbach e Proudhon, autores cuja influência sobre Bakunin remonta, como vimos, etapa anterior.

Período idealista metafísico (1835-1841)
Idealismo Transcendental (Kantiano) – 1835

Idealismo Absoluto (Fichteano) – 1836

Idealismo Absoluto (Hegeliano) – 1837
Período idealista dialético (1842-1864)       
Esquerda Hegeliana – 1842

Democracia Socialista – 1842-1848

Nacionalismo democrático (pan-eslavismo) – 1848-1864
Período materialista (1864-1876)
Transição do nacionalismo ao Anarquismo – 1864-1865

Inicio do anarquismo e do materialismo – 1865-1867

Anarquismo coletivista e ateu – 1865-1876





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terça-feira, 27 de maio de 2014

LUTAR NÃO É CRIME! - Nota de solidariedade axs pres@s políticos.



Nenhum governo do mundo combate o fascismo até a morte. Quando a burguesia vê que o poder lhe escapa das mãos, recorre ao fascismo para manter-se”. 
– Buenaventura Durruti.

Faltando poucos dias para o evento mais vergonhoso que este país já realizou, evento este que é a prioridade de governos e empresários, uma onda de prisões aos companheiros em várias partes do país, que se levantam contra as injustiças sociais, que ocupam as ruas, e que lutam por um presente e futuro melhor que este. Goiânia, o caso mais recente, já são quatro os camaradas presos. Outro companheiro preferiu não se deixar cair nas garras do corpo repressivo do Estado, e ainda não foi encontrado.

Esta postura do Estado é recorrente. O combate ao progressismo, o medo fundido diabolicamente com um poder semi-infinito, une as forças midiáticas e repressivas em uma cruzada de manipulação e contenção em massa. 

Em maio deste ano, na cidade de Palmeirais-PI, a população, ao passar três dias sem energia elétrica, queimaram a sede da empresa de distribuição de energia elétrica na região, o que gerou nos meios de comunicação local uma caça aos que realizaram o ato. Em Teresina, durante a vinda da taça da copa, dois companheiros foram detidos, e duas companheiras foram encaminhadas para a delegacia, por colocarem em risco o interesse da burguesia local, do governo do município e do Estado. A mídia, sempre do lado das oligarquias, dos poderosos, dos opressores, criminalizou ferozmente o ato, e para além deste incidente, na recente greve dos motoristas em Teresina, Silas Freire, no pico de sua mediocridade enquanto apresentador, já destacada em outras ocasiões, bradou “greve sim, anarquia não!”, ao notar o teor de radicalização que os trabalhadores estavam tomando. Em Parnaíba, quando @s alun@s do Liceu Parnaibano fecharam uma das principais avenidas da cidade em prol de melhorias estruturais do ensino e da educação em geral, não tardou um grupo de militares tentar coibir, desestimular e destruir a ação popular, o que foi em vão, uma vez que @s estudantxs, unidos, rechaçaram a atuação policial e continuaram a fechar a avenida. O ato se repetiu na visita da presidenta do Brasil, mas que não repercutiu na mídia local, governista em essência, ou oportunista por natureza. O mesmo posicionamento, tanto da mídia quanto do corpo repressivo do Estado pode ser esperado amanhã, 28M, Dia Nacional de Mobilização das Universidades Públicas Estaduais e Municipais, onde alun@s, professores e servidores da UESPI farão um ato em Teresina, da Avenida Frei Serafim até o Palácio de Karnak, em prol de uma série de necessidades básicas da UESPI, como o melhoramento da estrutura física dos campi, biblioteca de qualidade e contratação de professores.

Para além das particularidades do país, cumpre observar a conjuntura política do mundo, não desligada de nossa realidade. Um caso em especial é a Europa. O nazifascismo cresce não somente em grupos paramilitares, mas agora também no parlamento. Grupos xenófobos, racistas, e ultranacionalistas crescem em um nível assustador. Um fenômeno que em muito conflui com a ascensão dos regimes de extrema-direita do passado europeu. A fragilidade econômica, a descrença, o desespero e a angústia popular, faz com que o povo se agarre em discursos paternalistas e radicais, que preveem a expulsão de imigrantes, o fortalecimento do corpo repressivo, e na construção de uma identidade comum, a bandeira do nacionalismo tremula nos países onde a crise econômica mais castigou a população. Com estas características, Adolf Hitler, Benito Mussolini, Francisco Franco e outros dominaram, exploraram e massacraram o povo.
Diante dos levantes populares em todo o mundo, a burguesia organizada no Estado lança mão de sua última arma: Governos autoritários, quebra de direitos civis, e combate incessante contra as seções organizadas da população, em especial os que dedicam a militância ao anticapitalismo e o antiautoritarismo, Em Parnaíba, Teresina, Palmeirais, Goiânia, Rio, São Paulo, Gênova, Atenas, ou Soma, na Turquia. 

E o que fazer?

Coragem – solidariedade – organização – combate.

A tentativa do Estado está baseada em propagar o medo. Dar exemplos de repressão para que todos temam o poder do Estado, assim como indicou Maquiavel em O Príncipe. Mas não devemos dar um passo atrás. Muito pelo contrário, que o suor e o sangue dos companheiros tombados em combate ou cerceados de sua liberdade sejam o combustível de uma nova rodada de levantes populares. Na medida em que a repressão aumenta, a resistência deve crescer proporcionalmente. Um dos sustentáculos do Estado é o autoritarismo, o medo preconizado em suas armas, e em seus meios jurídicos de frear as lutas populares, mas estas não devem ser temidas. Nas fileiras anarquistas, o sangue de nossas ideias jorrou com Ravachol, August Spies, San Fielden, Oscar Neeb, Adolf Fischer, Michel Schwab, Louis Ling, George Engel, os milicianos da Makhnovichina e todos os mortos pela revolução bolchevique de 1917, Nicola Sacco, Bartolomeo Vanzetti, Antonio Martinez, Francèsc Ferrer y Guardia, Buenaventura Durruti e @s companheir@s abatid@s nos campos de batalha da Espanha, Carlo Giuliani, e tantos outros que ficaram ocultos na história das resistências populares e do anarquismo. Estes não temeram, não duvidaram da validade e importância da luta por um mundo pautado em igualdade política, econômica, social e liberdade. Devemos, portanto e primeiramente, certificarmo-nos em mantermos ao lado dos oprimidos, e lutar sem temer.

Aos que caíram nas garras do Estado, ou que morreram, a nossa solidariedade. Aliás, esta muitas vezes é nossa única defesa frente o ataque dos burgueses e do Estado. Só contamos com nós mesmos para nos amparar em momentos de dificuldade. A história nos mostra momentos de solidariedade, como no desenvolvimento da Cruz Negra Anarquista, para defender e amparar companheir@s pres@s. Cobrir de solidariedade os que lutam, quer seja com um texto como este, ou uma coleta de assinaturas, como está acontecendo atualmente nas redes sociais, ou na criação de fundos de ajuda para pagar fianças, como também está ocorrendo para alguns companheiros presos em Goiás.

Com a repressão, o medo também é uma arma contra a organização, cuja qual não pode se deixar abater, principalmente nestes momentos difíceis. Contrariamente, deve-se fortalecer mais e mais as bases das organizações, para garantir não somente a continuidade das lutas, mas também dar apoio aos camaradas que precisam de nossa ajuda. Buscar apoio de todos os grupos que fazem o recorte de classe pautado lado a lado com os interesses dos que sofrem com os males do capitalismo e o autoritarismo do Estado é outra necessidade pontual. Uma legítima e ampla frente para garantir a reorganização das forças populares após os ataques dos governantes e empresários, como se percebe em Goiás.

A continuidade das lutas e a superação do medo da repressão fará com que o aparato estatal estenda sua natural violação aos seres humanos. Os ataques serão mais constantes, e o acirramento da luta de classes ficará claro até para quem nunca se debruçou sobre obras do socialismo ou mesmo nunca se permitiu refletir de forma pragmática as suas próprias debilidades. É neste momento, que a necessidade de uma organização coerente, e um combate nivelado com a força do Estado e da burguesia poderá descambar em uma guerra civil, quiçá em uma Revolução Social. É neste momento onde nós deveremos estar preparados de todas as formas possíveis para resistir, repelir manobras de grupos autoritários, e talhar com nossas próprias mãos um novo porvir. As novas tecnologias cumprem um papel importantíssimo nesta luta, pois diferentemente dos companheiros que lutaram no passado, temos meios de comunicação e de exposição dos fatos bem mais veloz que as cartas trocadas na época. Embora úteis, têm poder limitado.  Se o dever de todo revolucionário é fazer a Revolução, estejamos preparados para qualquer situação vindoura.

Segue abaixo dois comunicados; o primeiro, do companheiro Tiago Madureira, ainda não encontrado:

Companheirada
Quero trazer alguns esclarecimentos sobre o que está acontecendo. Na sexta feira, 23, a polícia efetuou a chamada “Operação 2,80”, que visava prender pessoas que participaram de manifestações pelo transporte e contra o aumento da passagem em Goiânia. Quatro mandatos de prisão preventiva foram emitidos. Três jovens, Heitor Vilela, Ian Caetano e João Marcos foram presos. Eu, o quarto indiciado, ainda não fui encontrado, e pretendo continuar assim.
As acusações são de que lideraríamos uma organização criminosa que estaria promovendo atos de vandalismo contra o patrimônio de empresas de ônibus, inclusive o inquérito aponta que somos responsáveis pela depredação de 104 veículos. Também nos acusa de por em risco a vida de outrem e de incitar a violência pelas ruas da cidade. São acusações graves, levianas, motivadas exclusivamente por um critério político que tem como objetivo marginalizar as movimentações populares, através da criminalização de alguns indivíduos falsamente apontados como líderes, para garantir a tranqüilidade para a realização da Copa do Mundo de Futebol e, principalmente, para tentar desmantelar todo o ímpeto resoluto e independente que estas mobilizações têm demonstrado. Vou brevemente argumentar sobre as acusações:
Quando acusam pessoas que se organizam em um movimento social público, cujas reuniões são abertas e que não faz nenhuma espécie de recorte ideológico-filosófico de ser uma quadrilha, estão atacando, na verdade, o direito à organização popular. É exatamente isto que querem impedir: que as pessoas, especialmente a juventude e os setores mais precarizados da sociedade, juntem-se, cheguem a acordos e se organizem para levar adiante, com as próprias mãos, a luta pela implantação de projetos e políticas que sejam do interesse de suas comunidades. A criminalização da Frente de Lutas pelo Transporte é a proibição explícita da criação e consolidação de espaços para a movimentação social.
Esforçam-se para imputar a nós o rótulo de líderes, mas, mesmo que nos condenem ao cadafalso, não conseguirão com isso parar a insatisfação popular, pois esta insatisfação não é algo artificial criado por líderes ou uma organização qualquer. Ela é fruto da humilhação cotidiana que é ser espremido em ônibus superlotados, pelo preço abusivo da passagem, pelas horas de espera intermináveis em terminais e pontos, pelos carros velhos e sucateados. Não somos líderes desta indignação que tomou conta d@s morador@s da periferia de Goiânia que dependem do sistema de transporte coletivo. Nenhuma pessoa em sã consciência, ou grupo político com o mínimo de honestidade, teria coragem de se dizer líder de manifestações que surgem sem previsão, que brotam, com cada vez mais freqüência, como resposta concreta a situações de momento: atrasou o ônibus as pessoas fecham o terminal.
A imprensa, em sua maioria, faz seu sensacionalismo idiotizante sobre depredação de patrimônio público e vandalismo, mas cabe aí algumas ponderações. Primeiro que estes ônibus não são patrimônio público. São patrimônio de grupos empresariais milionários. Não existe transporte público em Goiânia. O que existe é a necessidade pública de se locomover e a exploração desta necessidade por estas empresas, entrincheiradas na RMTC. Quando um ônibus é queimado ou quebrado o prejuízo é das empresas, e se por acaso os cofres públicos são sangrados por isso é porque algum esquema mafioso foi montado para garantir, a qualquer custo, o lucro empresarial. E se isto acontece exigimos que seja publicizado. Quanto ao vandalismo, não posso condenar um pai ou mãe de família, um garoto ou garota da periferia que, cansado do sofrimento e do flagelo, da desumanização cada vez mais profunda do transporte, da oneração do parco orçamento da família trabalhadora, num momento de desespero e revolta joga uma pedra em um ônibus. É a inversão completa da realidade. A conseqüência, que são os ônibus depredados, é apresentada como toda a questão, enquanto a causa primeira, que é o miserável serviço oferecido pela Máfia do Transporte (Consórcio RMTC e seus lacaios políticos) fica secundarizado. Mas esta secundarização é apenas midiática, pois apesar dos esforços de maquiagem na imprensa nossas vidas continuam as mesmas e o resultado são estes que seus jornais noticiam com tanto alarde, como se fosse obra de um pequeno grupo de malfeitores.
Acusam-nos de fazer apologia à violência por posts no facebook e panfletos. Meus caros, o que é isso? Polícia do pensamento? Censura? Eu pergunto, um filme que mostra a história de um serial killer vai influenciar as pessoas a sair matando? Então porque um cartaz com o desenho de um ônibus em chamas influenciaria alguém a queimar um veículo? Isto não passa de UMA INTERPRETAÇÃO POLÍTICA feita pelo magistrado que mandou nos prender. Na verdade o que os assusta nos cartazes é o chamado à mobilização, à organização e à luta. É seu conservantismo político que, a serviço dos interesses dos mais ricos, vê em nossos panfletos chamamentos para a violência. Argumentam que pomos em risco a vida de outrem, quando na verdade é sua polícia militar que se infiltra nas manifestações para implantar a desordem, prender, assediar, espancar, torturar e, mesmo, chegar às vias de fato contra trabalhador@s e jovens que estão nas ruas protestando. Esta polícia que bate nas ruas, espanca nos terminais, invade para torturar até mesmo num show de Rock em Repúdio à ditadura militar e que mata todos os dias na periferia é que põe em risco a vida de outros e propaga a violência. Atuações que lembram gangs, provocações, abusos de toda espécie estão no repertório desta corporação que atua a serviço dos interesses do empresariado, sob as ordens dos governos federal, estadual e municipal. A reação de manifestantes que, para não serem esmagados e agredidos, atiram paus contra uma tropa sanguinária não pode nunca ser comparada com a demência bárbara que estes agentes têm protagonizado em nossas manifestações.
Todo o inquérito e a decisão judicial, que estão divulgadas na internet, são baseados em suposições. Não foi apresentada nenhuma prova objetiva que ligue eu, Ian, Heitor e João Marcos a nenhuma das acusações. A prisão preventiva É UM ABUSO e uma DECISÃO POLÍTICA. Privar pessoas de seu cotidiano, sem julgamento, sem provas, por que participaram de passeatas é, sim, a realização de um estado de exceção que, com certeza, será ampliado para todo o país caso não o derrotemos agora.
Também é falsa a afirmação de que somos membros do “movimento estudantil popular revolucionário”. Nem eu, nem nenhum dos indicados participamos desta organização, inclusive temos opiniões distintas do movimento em questão. Mas, eu pessoalmente, penso que este boato é a tentativa de criminalizar, indiretamente, este grupo também e me solidarizo aos seus membros.
Agora peço à tod@s que não se amedrontem. Que nosso flagelo sirva de combustível e inspiração para a manutenção e a ampliação da luta e da organização popular em Goiânia. Eu pretendo manter meu direito de não ser localizado e, enquanto puder, não quero estar sob as garras e grades do estado burguês. Aproveito para deixar claro que, apesar da minha vontade, posso ser preso a qualquer momento e penso ser de profunda importância que meu caso seja mantido em visibilidade, para que não aconteça de eu ser capturado sem o conhecimento d@s companheir@s, o que me colocaria numa situação mais delicada do que a que já me encontro, pois poderia sofrer com torturas e, quiçá, algo pior. Divulguem amplamente o que está acontecendo comigo e com os camaradas. Não esqueçamos do companheiro MIKE, que está detido desde o dia 15 de Maio por participar de uma manifestação espontânea no terminal Padre Pelágio. Estou sabendo da manifestação de amanhã e meu peito se encheu de esperança. Saíam às ruas amig@s! Vamos mostrar que este levante que tem acontecido nos terminais faz parte de um processo bem germinado de consciência popular e de gana pela luta. Não parem as manifestações, nem a mobilização. Se a caça as bruxas começou em Goiânia é aqui mesmo que começaremos a apagar as fogueiras desta nova inquisição!
Abraços apertados nos meus amigos Heitor, Ian, João e Mike. Estaremos festejando nas ruas em breve meus companheiros.
Liberdade para tod@s nós, pres@s políticos!
Não a criminalização dos movimentos sociais!
Se não tem transporte, saúde, educação, moradia e direitos NÃO VAI TER COPA!
Viva o povo organizado e combativo! 
Viva a Frente de Lutas GO!
TIAGO MADUREIRA ARAUJO – BRASIL 26/05/2014
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Agora, a carta dos companheiros Heitor, João e Ian, presos na “operação 2,80” em Goiânia:

Carta aberta aos camaradas,
“Enviamos-lhes esta carta para tranquiliza-los, primeiramente, de nossa situação, que embora não seja a de estar lado a lado com aqueles com quem lutamos, de estar com os amores que tanto prezamos, de estar com a família que tanto estimamos, é a melhor das possibilidades na situação em que estamos.
Por tantas vezes que estivemos juntos e em solidariedade. Sabemos que aqui se encontram apenas três do crescente enxame de moscas que se cansaram de ciscar no lixo em que se encontra a sociedade.
Tudo que se transforma evolui, devemos manter a constante ativamente em tentar mudar o que nos consome, o que nos destrói. Temos estado, em maior e menor grau, cientes dos recentes acontecimentos. O importante é que não atendamos ao evidente intento deste enjaulamento de patente motivação política.
Pegaram-nos de madrugada, mas sabemos que a noite é mais escura um pouco antes do amanhecer. Não nos deixemos abater, não nos dobremos, não abaixemos as cabeças. Sabemos quais são os interesses do estado e qual é sua razão de ser e com quem é seu conúbio. Os dias e anos passam e lembremos que estamos em maio, muitos já passaram e vários outros virão.
Agradecemos a todos pelos esforços prestados em nossa causa, pelo caloroso apoio por todos dado, sem os quais estaríamos por certo, em situação bem pior.
Aos amores, imensa saudade do calor que de jato bombeia em nossas veias, aos amigos e familiares a certeza de que não nos envergonhamos de enfrentar de frente com nossas posições, a repressão que assola todos que desestabilizam o Status Quo.
Uma efusiva saudação aos companheiros e às companheiras a quem esta chegar, nunca existiram melhores. Sugerimos que bebam e festejem, no melhor estilo comum parisiense, em nosso lugar.
Um grande abraço aos camaradas.
Ian, Heitor e João"
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(Colabore na Coleta de assinaturas para o MOVIMENTO CONTRA A CRIMINALIZAÇÃO DA LUTA POPULAR em Goiás, clicando aqui).

Este texto é dedicado aos companheiros Tiago, Mike, Ian, Heitor, João, e tod@s @s pres@s políticos no Brasil e no mundo, das mais variadas organizações de militância.

O povo vencerá!
#NÃOVAITERCOPA.

Grupo de Estudos Anarquistas do Piauí.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Festa ou protesto?

O texto disponibilizado é uma matéria do jornal A Voz do Trabalhador – Órgão da Confederação Operária Brasileira - Ano I, n° 10, dia 1° de maio de 1909.



Como deve ser compreendido o 1° de maio por todos aqueles que trabalham, por todos que através dos tempos tem passado uma vida infame e cheia de miséria?

Sim! Todos os que passaram longos anos executando um trabalho extenuante, sem nunca terem alcançado um pouco de bem estar servindo toda a sua vida à classe capitalista, como devem eles comemorar o 1° de maio?

Creio que todos os trabalhadores nesse dia devem protestar energicamente contra esta ordem de coisas, demonstrando a toda essa gente a hipócrita tirania, que não estão dispostos a aceitar a fome, a miséria, em paga do seu esforço, feito em benefício de meia dúzia de bandidos sanguessugas da humanidade, mas sim a lutar energicamente em prol de uma vida mais livre, onde o seu esforço represente unicamente a sua própria vontade; e do qual possam obter o necessário para a completa satisfação das suas necessidades; compartilhando assim do progresso humano para o qual a completa satisfação das suas necessidades; compartilhando assim do progresso humano para o qual concorrem na medida das suas forças. 

Esse dia, deve ser de revolta, e não de festa; digo de revolta, porque creio ser necessário revoltarem-se todos os seres que mourejam diariamente dentro das oficinas, das fábricas, nas minas e nos campos, contra essa sociedade nefanda, que procura artimanhosamente escravizar-nos, negando-nos o direito que nos assiste de gozar de todas as riquezas que a natureza possui, e das quais nós tratamos! Digo que não deve ser de festa, porque festejar o trabalho na atual sociedade seria o mesmo que festejar a nossa escravidão, a miséria que nos avassala, equivaleria a dizer que estamos contentes com esta corrente tirânica que nos oprime e satisfeitos com o jugo aniquilador que nos faz curvar sob o seu peso.

É preciso que todos os oprimidos se rebelem contra a organização atual, é necessário que demonstrem francamente o que seu descontentamento por toda essa miséria que invade os lares daqueles que duto produzem e nada gozam; que todos os proletários com palavras vibrantes ponham bem visível o seu ódio a todos esses cancros sociais.

Quando toda essa legião de seres humanos assalariados pelo capital, se unam para acabar com todas essas infâmias praticadas por essa classe escravocrata que se apoia na inconsciência das criaturas incultas, faltas de experiência própria, para poderem compreender os direitos que lhes assistem na terra.

Todos os operários conscientes devem por em relevo perante os que menos compreendem, que acima de tudo devemos considerar a liberdade sobre a terra, pela qual temos que lutar; lutar sem tréguas, até adquirirmos tudo o que por direito nos pertence, e que até hoje nos tem sido extorquido pela infame e degenerada sociedade burguesa.

O homem só será feliz quando for “livre sobre a terra livre”; assim escreveu não sei quem, não me lembro agora, mas aceito esse pensamento como lógico e verdadeiro, por que nele se encerra toda a felicidade da vida. 

Eurípedes Floreal.